Sou casado há 30 anos e adoro tudo na minha mulher. Menos uma coisa: «Ao longo dos anos aprendi a reconhecer os sinais»

Um silêncio cheio de significado.

Todas as semanas, publicamos contos ficcionais sobre amor, a partir de casos reais.

Sou casado há 30 anos e adoro tudo na minha mulher. Menos uma coisa: «Ao  longo dos anos aprendi a reconhecer os sinais» - V+ TVI

Sou o António. Estou casado há trinta anos com a Alice — trinta anos de risos, rotinas, silêncios e cumplicidades. Digo sem hesitar: adoro tudo nela. Adoro o modo como enruga o nariz quando prova o vinho antes de servir. Adoro o riso fácil, as mãos pequenas que se movem rápidas na cozinha, o jeito como dobra as roupas enquanto canta baixinho, quase imperceptível.

Temos dois filhos, o André e a Alexandra — sim, tudo começa por “A”. Às vezes brincamos, dizendo que o abecedário da nossa vida parou logo ali, no princípio de tudo. Vivemos juntos desde os vinte e sete, e posso dizer que a vida tem sido generosa connosco. Mas há uma coisa — uma única, pequena e, ao mesmo tempo, imensa coisa — que me custa. A Alice não fala quando algo a magoa. Ela silencia. Fecha-se. Retira-se para dentro de si, e o mundo à volta dela fica suspenso, como se o ar tivesse ficado mais denso.

Ao longo dos anos aprendi a reconhecer os sinais. O olhar que evita o meu, a forma como arruma a loiça com mais cuidado do que o habitual, o “está tudo bem” que soa a distância, a desilusão disfarçada de serenidade.
E então instala-se o que eu chamo — em voz baixa, só para mim — o inverno do silêncio.

Não há gritos, não há discussões. Só ausência. A casa, que sempre teve som de vida — os risos dos filhos, o rádio na cozinha, o tilintar dos copos — fica coberta de uma calma que dói. Sento-me ao lado dela no sofá e sinto o frio invisível que nos separa, mesmo com os ombros quase a tocar.
Pergunto-lhe o que se passa. Ela responde “nada”.

Mas é um “nada” que pesa toneladas, um “nada” que enche a sala inteira e me envolve como um nevoeiro espesso. É o tipo de silêncio que tem corpo, volume e temperatura. Sinto-o entre os pratos, entre os talheres, entre as respirações contidas. O ar muda de peso, a luz parece mais fria, até o relógio na parede parece atrasar o tempo. Esse “nada” não é ausência — é excesso. É o transbordar de tudo o que ela não diz, o acúmulo invisível de pequenas mágoas, de gestos mal interpretados, de palavras que ficaram por nascer. Cada vez que a Alice diz “nada”, o mundo à nossa volta parece sustentar um eco antigo, como se o próprio chão se lembrasse de todas as vezes que já ouvimos essa palavra.

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E eu fico ali, diante dela, tentando decifrar o mistério do seu silêncio. Observo o modo como evita o meu olhar, como segura o copo de água com delicadeza forçada, como o canto da boca treme quase imperceptivelmente. Tento compreender, tento ler-lhe o rosto como quem decifra um mapa cheio de rasuras. Digo o nome dela — “Alice” — e o som do nome soa estranho, como se não me pertencesse mais. Tento insistir: “Mas diz-me o que tens.” Ela sorri, mas é um sorriso educado, mecânico, um gesto de cortesia mais do que de afeto. “Não é nada, António.” A voz sai suave, mas fria, e o modo como pronuncia o meu nome parece encerrar a conversa.

Então o silêncio volta, espesso e absoluto. E nesse instante percebo que há discussões que gritam e há discussões que se calam — e as que se calam doem mais. Ficamos assim, dois corpos partilhando o mesmo espaço e, ao mesmo tempo, separados por um muro invisível. O jantar prossegue em silêncio, a faca corta o peixe, o garfo raspa no prato, o som é pequeno, mas parece enorme dentro daquela quietude. Cada gesto é um lembrete de que algo se partiu, mesmo que não saibamos exatamente o quê.

Mais tarde, na cama, deito-me ao lado dela. O corpo dela está virado para o outro lado, e a distância entre nós, embora mínima, é abissal. Escuto a respiração dela — lenta, ritmada, quase serena — e fico a pensar se o sono é mesmo sono ou apenas mais uma forma de silêncio. Fecho os olhos e tento adormecer, mas o “nada” está ali também, deitado entre nós, respirando conosco.

Lembro-me de uma vez — foi há uns dez anos — em que cancelei uma viagem que tínhamos planeado para o Douro. Trabalho, sempre o trabalho. Ela não me disse uma única palavra sobre o assunto. Nem uma.
Durante três dias, foi como viver ao lado de um espelho que não devolvia reflexo .Falava-lhe de coisas banais, do tempo, da sopa, do André que ia começar a conduzir. Nada. Ela movia-se pela casa como se me visse sem me ver. E, paradoxalmente, quanto mais silêncio fazia, mais a amava — talvez por culpa, talvez por saudade da voz dela, talvez porque o silêncio é uma forma estranha de presença.

Depois, um dia, ao pequeno-almoço, colocou à minha frente uma chávena de café — com o leite na medida certa, como só ela sabe — e perguntou, simplesmente: “Dormiste bem?” E tudo voltou a ser como antes. Como se as palavras perdidas tivessem sido varridas pela ternura do gesto.
Mas dentro de mim ficou sempre a sombra do que não foi dito.

O tempo ensinou-me a respeitar esse silêncio, mas nunca a entendê-lo. A Alice fala com o coração quando está feliz, mas cala-se quando sofre — como se o sofrimento fosse uma ferida que prefere esconder do mundo, até de mim. E eu fico ali, à porta desse silêncio, à espera que ela me deixe entrar.

Trinta anos depois, continuo a amar tudo nela — até esse defeito que tanto me atormenta.
Mas há noites em que acordo e olho para ela, adormecida ao meu lado, e penso:
se algum dia o silêncio dela se tornasse definitivo, eu não saberia viver.

Este conteúdo contou com a participação de inteligência artificial na sua elaboração.